​Saúde & Trabalho no Neoliberalismo: Parte I​I​ T​rabalho e doença ao longo do tempo

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Saúde e Trabalho no Neoliberalismo

Parte II

Trabalho e doença ao longo do tempo.

A) Tempos Ancestrais

Referências à associação entre o trabalho e o desencadeamento de processo saúde-doença foram encontradas em papiros egípcios e na civilização greco-romana. As tarefas de mais elevado risco eram feitas por povos escravos das nações conquistadas.

Hipócrates (460-375 a.C.) descreveu com singularidade o quadro de “intoxicação saturnina” em um mineiro, no entanto omitiu o ambiente de trabalho e a ocupação em seu clássico “Ares, Águas e Lugares”.

Segundo Berlinguer, o problema na época, não era apenas estar doente ou sentir-se doente, mas poder estar doente.

Lucrécio, um século antes da Era Cristã, com a sensibilidade e indignação próprias de um poeta, indagava acerca dos cavouqueiros das minas: “Não viste ou ouviste como morrem em tão pouco tempo, quando ainda tinham tanta vida pela frente?“.

Esta simples observação evoca ainda hoje reflexões e nos provoca a tomar atitudes frente às situações com as quais nos defrontamos no campo da saúde pública, como:
 A precoce perda de vidas humanas, como a mais dramática marca do trabalho sobre a vida dos trabalhadores;
 O desenvolvimento de uma ferramenta para estimar “os anos potenciais de vida perdidos”

Ovídio (23a.C.–17d.C.), “… cansados de tantos funerais, vendo inúteis os esforços dos médicos, os habitantes imploram a ajuda celeste”. (As Metamorfoses, Esculápio).

Plínio, o Velho (23-79 d.C.), em seu tratado “De Historia Naturalis”, ao visitar locais de trabalho, descreve impressionado o aspecto de trabalhadores expostos ao chumbo, mercúrio e a poeiras.

Faz uma descrição dos primeiros equipamentos de proteção conhecidos, máscaras, panos ou membranas de bexiga de carneiro para o rosto, iniciativa dos próprios escravos para atenuar a inalação de poeiras nocivas.

IDADE MÉDIA

Na Idade Média, escassos registros nos foram legados acerca da relação trabalho e saúde. Uma vez mais, as observações concentraram-se na atividade extrativa mineral, a partir do século XVI, a importância das nações estava diretamente ligada à quantidade de metais nobres extraídos, vital para o processo de colonização que ocorria no mundo.

Agrícola (1494-1555) e Paracelso (1493-1541) escreveram célebres tratados com descrição de quadros de doença de provável relação com o trabalho. Em seu livro post-mortem “De Re Metallica”, um capítulo é dedicado aos acidentes de trabalho e às doenças mais comuns entre os mineiros.

Sua descrição da “asma dos mineiros” sugere tratar-se de silicose, “…em algumas regiões extrativas, as mulheres chegavam a casar 7 vezes, roubadas que eram de seus maridos, pela prematura morte encontrada na ocupação que exerciam”.

Este cruel relato nos traz importantes ensinamentos: a mortalidade em determinados grupos humanos é mais elevada que em outros. Mineiros morrem antes e morrem mais.

A simples introdução de meios para ventilar as minas, como sugeria Agrícola, poderia proteger os trabalhadores. Portanto, não se tratava de um problema de natureza médica e sim tecnológica.

Em 1700, Ramazzini em seu livro “De Morbis Artificum Diatriba”, descreve com rara sensibilidade e erudição literária, doenças em mais de 50 ocupações. Às perguntas hipocráticas fundamentais na história e anamnese médicas tradicionais propõem que se acrescente: “qual é a sua ocupação”.

Era a fase dos “miasmas” e da alquimia, de predomínio do conteúdo empírico do conhecimento científico acerca do processo saúde-doença.

A Revolução Industrial

Os impactos nos primórdios da Revolução Industrial iniciada na Europa (Inglaterra, França e Alemanha), entre os idos 1760-1850, sobre a vida e a saúde das pessoas, foram objeto de inúmeros estudos.

Acidentes graves, mutilantes e fatais, acometeram os trabalhadores, não poupando sequer mulheres e crianças a partir de 6 anos (pela possibilidade de lhes serem pagos salários mais baixos). “Germinal” de Emile Zola legou-nos uma dimensão do que acontecia naquela época.

A situação só se modificaria com intensos movimentos sociais, que obrigou a políticos e legisladores, a introduzirem medidas legais de controle dos ambientes de trabalho.

Em 1802, como conseqüência dessa mobilização houve a redução da jornada de trabalho e a regulamentação de idade mínima para trabalhar.

Em 1833, o “Factory Act – Lei das Fábricas” ampliaria as medidas de proteção aos trabalhadores, incluindo a contratação de médicos para o controle de saúde, no local de trabalho.

Charles Thackrah, em 1831, em seu livro “The effects of the principal arts, trades and professions, and of the civic states and habits of living, on health and longevity, with suggestions for the removal of many of the agents which produce disease and shorten the duration of life”, sinaliza que as deploráveis condições de trabalho e vida predominantes na cidade, eram responsáveis pelo fato de haver taxas de doença e mortalidade mais elevadas do que nas regiões circunvizinhas.

Percival Pott (1713-1788) estabeleceu nexo causal entre câncer de escroto e trabalho em limpeza de chaminés, ouvindo “a opinião dos trabalhadores”. Villermé (1782-1863) introduziu a análise de morbidade dos trabalhadores.

Tanquerel des Planches (1809-1862), publicou o “Traité des Maladies de Plomb ou Saturnines”, baseado na observação de 1200 casos de intoxicação pelo chumbo.

William Farr (1807-1883) estudou o impacto das condições dos ambientes de trabalho na morbidade e na mortalidade em mineiros em diferentes regiões da Inglaterra, quantificando o excesso de morte (fundamento hoje do importante parâmetro de medida denominado de “risco relativo”).

São descritos também, desde aquela época, uma gama de efeitos mal definidos, como a fadiga, o envelhecimento precoce, o desgaste e alterações comportamentais.

Descrição como a do Dr. Auguste Delpech em trabalhadores intoxicados com o sulfeto de carbono (também usado como raticida) “… o que trabalha no enxofre não é mais um homem. Ele até pode continuar trabalhando dia após dia, mas ele nunca mais será capaz de ser uma pessoa independente. A depressão o afeta e ele perde sua força de vontade, sua auto-estima, sua memória, torna-se incapaz de trabalhar em outra atividade”.

Em 1902, a “Dangerous Trades Magazine” descrevia que em uma indústria de vulcanização de borracha (onde se utilizava sulfeto de carbono), haviam sido colocadas grades nas janelas do prédio, para evitar que os trabalhadores nos surtos maníacos se jogassem pelas janelas.

Este período caracteriza-se pelas grandes descobertas no campo da bacteriologia, das pesquisas com uso de microscópio, que teve em Pasteur o grande precursor. É valorizado o método científico na investigação sobre o processo saúde-doença.

Snow, na Inglaterra, utilizando a epidemiologia descreve com singularidade uma epidemia de cólera, estabelecendo relação de causa e efeito.

Ao final do séc. XIX e início do séc. XX, é concebida a OIT – Organização Internacional do Trabalho, consolidando-se no pós-guerra, com o Tratado de Versalhes, em 1918, no organismo regulador internacional nas relações entre o trabalho e o capital.

Desta época datam as primeiras e significativas Resoluções, Recomendações e Acordos Internacionais do Trabalho, que tornariam os países signatários responsáveis por adotar em suas respectivas legislações, a proteção ao trabalho da mulher, a de impedir o trabalho infantil, a de proteger os operários em trabalhos considerados perigosos, insalubres e penosos etc.

Afinal, qual o valor do trabalho, na sociedade moderna?

Segue nas partes III a VII.
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AjAraújo (Alberto José de Araújo), MD do Trabalho. Doutor em Ciências em Engenharia de Produção COPPE/UFRJ.

Imagem: Sebastião Salgado

Obras Consultadas:

1. Bartholo JR., RS Os Labirintos do Silêncio. Ed. Marco Zero Ltda. 1986.

2. Sodré, N W. A Farsa do Neoliberalismo. 6ª Edição. 1999. Graphia.

3. Mendes, R. Patologia do Trabalho. Atheneu. 1996.

4. Dejours, C. A banalização da injustiça social. Editora da FGV. 1999.

5. Antunes, R. Os Sentidos do Trabalho. Boitempo Editorial, 1999.

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