História do Tabaco

“A História do Tabaco” 1

Alberto José de Araújo

Núcleo de Estudos e Tratamento do Tabagismo – Instituto de Doenças do Tórax – HUCFF/UFRJ. Mestre e Doutor em Ciências. Pneumologista, Certificação em Tabagismo – Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio.

INTRODUÇÃO

A história do consumo do tabaco no ocidente tem como marco a descoberta do novo mundo, a América, pelos grandes navegadores.

O ciclo das navegações, além de aproximar os povos nativos e seus hábitos, crenças, culturas, também gerou intenso intercâmbio de produtos típicos, tais como as especiarias da Índia e da China, introduzindo novos costumes, dos fenícios aos vikings, de Marco Polo a Vasco da Gama.

Quando Cristóvão Colombo aportou na América, em 1492, decerto não imaginava que o ritual de recepção dos nativos com lanças feitas de madeira, a oferta de frutas tropicais e “folhas secas que exalavam um perfume peculiar”, abriria as portas do mundo ocidental para a nova e mortal especiaria do mundo contemporâneo – o fumo do tabaco.

Figura 1: sacerdote maia fumando em um totem de madeira.

Texto escrito pelo autor para capítulo do livro: “Álcool, Tabaco e Maconha: Drogas Pediátricas”, organizado pelo Dr. João Paulo Becker Lotufo, lançado em março de 2016.

O primeiro fumante ocidental usou charuto…

Em princípio, os marujos da frota colombina apreciaram o tabaco, mas descartaram as folhas secas. Algumas semanas depois, um dos marujos que desembarcou em Cuba deu algumas tragadas nas folhas de tabaco enroladas pelos nativos e logo se tornou um fumante, provavelmente sendo o primeiro europeu a experimentar aquilo que se
tornaria mais tarde o tradicional “charuto cubano”.

O tabaco também foi experimentado como “cachimbo” por outros exploradores, e em pouco tempo havia grande número de fumantes durante as expedições à América nas décadas seguintes. Cortez – da expedição de Colombo – relatou ter visto índios astecas usando fumo aromatizado com cana em formato de “cigarros” e que os nativos de Cuba enrolavam as folhas na forma similar aos “charutos”.

Mas de onde vem esta planta do tabaco?

A planta nicotiana tabacum é nativa do continente americano. Ela se tornou conhecida para o resto do mundo a partir dos séculos 15 e 16 quando os
exploradores europeus observaram que era usada como “remédio e alucinógeno” pelos índios americanos. Ao retornarem de suas missões levaram a planta para a Europa e rapidamente o uso do tabaco foi adotado pelas cortes e, posteriormente, pela plebe como droga da moda.

O tabaco chegou a ser banido, mas acabou se disseminando…

Apesar de ao tabaco terem sido atribuídos poderes de cura, inicialmente o seu consumo não foi tão bem aceito e foi banido por reis e pelo Papa Urbano VII. Contudo, os efeitos econômicos favoráveis e a ampla popularidadeocasionaram aceitação do produto em todas as culturas.

Ele rapidamente se espalhou por todo o mundo e tornou-se base sólida para o crescimento de economias emergentes, como a americana, e de países que alavancavam a revolução industrial na Europa, como o Reino Unido, França e Espanha.

A produção do tabaco ao longo dos séculos seguintes deixou de ser uma produção artesanal para uso ritualístico para se tornar uma das culturas mais promissoras do mundo que caminhava a passos largos do feudalismo para a revolução industrial.

Neste texto apresentaremos, de forma cronológica e sintética, os principais fatos documentados sobre a indústria do tabaco, dos mais remotos aos atuais.

A indústria do tabaco se tornou uma das mais poderosas do planeta. Lançando mão de agressivas estratégias publicitárias, consagrou o tabaco como primeiro produto globalizado da era moderna, antes mesmo que este termo fosse de uso corrente. Conhecer o ciclo produtivo do tabaco e suas raízes
histórico-político-sociais é fundamental para que se compreenda toda a dimensão do alcance das políticas de controle do tabaco recomendadas pela Organização Mundial da Saúde no tratado de saúde pública denominado “Convenção Quadro para o Controle do Tabaco”.

CRONOLOGIA: DA PRÉ-HISTÓRIA À DESCOBERTA DA AMÉRICA

Os primórdios do uso do tabaco…

A nicotiana tabacum e a nicotiana rustica são as formas mais conhecidas de cerca de trinta espécies da planta nicotiana. A origem do nome é atribuída aos índios Arawak que usavam um tubo em forma de Y paraaspirar a fumaça de uma erva através das narinas, além do fato de enrolarem as folhas na forma de cilindros, o que corresponde aos charutos dos tempos modernos.

Mas, de onde vem o termo tabaco?

O termo tabaco, ao que parece, teve origem na Ásia, no século IX, já que a palavra árabe tabbâq designava plantas fumadas em cachimbos com o formato de tubos de bambus. O seu uso entre chineses e persas pode ter sido anterior à descoberta da América. O fumo de tabaco tem sido usado na China e em outros países do Oriente desde tempos imemoriais. É possível especular que os poderosos impérios da Assíria
e da Pérsia tenham sucumbido ao hábito.

As diferentes espécies de plantas do tabaco conferiram características distintas associadas ao tabagismo (combustão lenta, rápida, suave ou forte), tornando-se populares em diferentes partes do mundo. O princípio ativo do tabaco é o alcaloide nicotina, responsável pela sua ação narcótica e relaxante.

Os povos maias, astecas e incas já usavam em rituais…

As informações sobre os primeiros usos do tabaco por nativos americanos antes da chegada dos europeus, em 1492, são restritas ao testemunho dos exploradores. Contudo, é observam-se esculturas e desenhos das culturas maias e incas que demonstram o uso do tabaco em cerimônias, ainda que pouco se
saiba sobre o real significado desses rituais.

Imagem (domínio público): macaco-aranha representando uma divindade fumando (vaso Maia).

O termo tabaco denominou todos os produtos derivados das folhas da nicotiana utilizados na forma de charutos, rapé, cachimbo, tabaco para mascar, narguilé e os cigarros industrializados. Mais recentemente, as pastas para os cigarros e charutos eletrônicos também foram aceitas como tabaco.

Quando os exploradores europeus chegaram à América, as diversas culturas nativas já tinham longa tradição de mascar ou aspirar tabaco, algumas vezes associados a outras plantas psicotrópicas.

Com o uso regular em contextos rituais e sociais, o tabaco e os seus homólogos foram apreciados justamente por seus efeitos fisiológicos e por alterarem o nível de consciência, o que permitia aos índios entrarem em estado propício às buscas espirituais, em suas práticas religiosas, do mesmo modo como utilizavam para se prepararem para as lutas intertribais.

A linha do tempo do tabaco do período pré-histórico até o século XV é apresentada no quadro 1, na fase de uso do tabaco em escala não comercial. Os eventos sucessivos à descoberta do novo mundo até a sua disseminação nos diversos continentes e país
serão tratados em tópicos específicos a seguir, buscando caracterizar cada período histórico.
Quadro 1 – Linha do Tempo do Tabaco – Pré-História a 1500

Período Cronologia dos Fatos da História do Tabaco
Pleistoceno: 2,5 milhões de anos Bloco fossilizado de tabaco é encontrado por paleontologistas no rio Maranon, no Peru (2010).
10.000 a.C. – 5.000 a.C. Nicotina é encontrada em plantas do mundo antigo, incluindo beladona e nicotiana africana.
Metabólitos da nicotina são encontrados em fósseis humanos e artefatos similares aos cachimbos no Oriente Médio e África.
6.000 a.C. A planta do tabaco começa a crescer nas Américas.
1 d.C. Uso do tabaco em quase toda a América.
Uso mascado e por enemas alucinógenos pelos Aguaruna no Peru.
470-630 Maias e Astecas usam tabaco para rituais religiosos e políticos.
600-1000 1º Registro: cerâmica mostra maia fumando um rolo de folhas amarradas com uma corda.
1492 Expedição de Colombo descobre as folhas de tabaco, recebido como presentedos índios Arawak e jogadas fora.
Rodrigo Jerez e Luís Torres observam os nativos fumando em Cuba. Jerez retorna à Espanha e torna-se o 1º fumante fora das Américas.
1493 Ramon Pane relata o uso de rapé e a inalação de fumaça, em tubo em Y, pelos nativos. Pane foi o primeiro homem a introduzir o tabaco na Europa.
1497 Robert Pane escreve o 1º relato de uso de tabaco nativo a aparecer na Europa: “De Insularim Ribitus”.
1499 Américo Vespúcio observou que os índios americanos preparavam um tabaco para mascar.
1500 Pedro Álvares Cabral descobre o Brasil e toma contato com a planta tabaco.

O uso Medicinal do Tabaco

Entre os maias o tabaco era oferecido aos deuses na forma de incenso para a queima nos altares e como fumo para os adoradores. Entre os astecas, fazia parte do ritual da cerimônia de sacrifício de prisioneiros ofertados ao Deus Tezcatlipoca. Os curandeiros de uma tribo primitiva no Brasil sopravam os cachimbos nos rostos dos nativos com o propósito de transmitir-lhes as virtudes heroicas. O uso do tabaco em cerimônias públicas e religiosas consagrou-se em todas as tribos americanas.

Os exploradores europeus reportaram que o tabaco, em suas diversas formas, era usado na cura de quase todas as doenças conhecidas pelos nativos. A nicotiana attenuata foi utilizada para uso medicinal entre as tribos do deserto na forma de cataplasmas no tratamento de dores de dente, reumatismo, edemas, eczema, e infecções da pele. As folhas mastigadas eram aplicadas em cortes, como no local da mordida de cascavel, após o veneno ser sugado.


Imagem (domínio público):
Macaco-aranha representando uma divindade fumando (vaso Maia).

Assim, o tabaco parecia uma verdadeira droga milagrosa, relaxando os jovens antes das batalhas, além de adiar a fome e tratar quase todos os tipos de doenças.

Os exploradores europeus aceitaram as argumentações dos nativos americanos quanto aos benefícios do tabaco para a saúde e foram mais longe, estendendo essas alegações, uma vez que acreditaram que o tabaco curaria até mesmo a devastadora peste bubônica.


Imagem (domínio público):
registro mais antigo de um europeu fumando cachimbo ~ 1594.

As primeiras Tentativas de Controle do Tabaco

As primeiras tentativas de restrição do consumo do tabaco resultaram em penas severas para os fumantes. O sultão Murad Amurath IV proibiu sua importação na Turquia, e condenava os transgressores à pena capital. O grão-duque de Moscou proibiu a entrada em seus domínios e decretou a pena de chicotadas para a primeira transgressão e morte para as reincidências. Em outras partes da Rússia, quando era
denunciado o consumo de tabaco, os fumantes tinham seus narizes ceifados.


Imagem (domínio público): sultão Amurath IV e a mesa de jantar.

O Xá da Pérsia Abbas I proibiu o uso do tabaco sob pena de morte e perda da propriedade. Os médicos persas e os “ulemás”
condenaram o tabaco por ser viciante e venenoso. O Papa Urbano VII decretou a primeira proibição pública para fumar, em 1590, ameaçando excomungar quem usasse tabaco, nas formas de rapé, mascado ou em cachimbo, no pórtico ou no interior das igrejas.


Imagem (domínio público): Papa Urbano VII foi a primeira autoridade a decretar a proibição do fumo em ambientes fechados

Em 1604, na Inglaterra, o Rei James I – um dos opositores mais ferrenhos do tabaco – escreveu um livro onde afirmava: “fumar é repugnante à visão, ao nariz, prejudicial para o cérebro e danoso para os pulmões” e, em função disso, decretou aumento de 4.000% nos impostos sobre o tabaco. O monarca relatou que, após a dissecação, encontrou-se uma substância similar à fuligem revestindo os pulmões de fumantes contumazes, constatação, contudo, insuficiente para evitar com que os seus súditos se mantivessem fieis ao ício.


Imagem (domínio público): Rei James I da Inglaterra retratado por Daniel Mytens (1621).

Contrapondo-se à argumentação do rei, alguns cientistas da época consideraram o tabaco como capaz de prevenir problemas de saúde, protegendo o corpo dos temidos miasmas. Durante a grande praga de peste bubônica (1665-1666), fumar tornou-se uma medida obrigatória em algumas cidades.

Em contrapartida, a cruzada contra o tabaco envolveu diversos povoados da Europa, como nos Cantões Suíços em 1654 e, mais adiante, no éculo XVIII alcançando também a Baviera e Berlim.

História do Tabaco a Partir do Período Renascentista

Os colonos portugueses cultivaram o tabaco usado pelos nativos e em 1548 já exportavam as folhas à Europa e abasteciam o consumo da corte portuguesa. No período colonial, a lavoura de tabaco ocupava o segundo lugar em importância econômica, logo depois do açúcar. Levado para a África, o fumo em rolo era trocado por escravos negros. O próprio brasão da república ostenta um ramo com frutos de café e outro
ramo florido de tabaco.

Na Espanha, em 1501, Rodrigo de Jerez foi perseguido pela Inquisição por fumar. Ainda assim, Fernando Cortez trouxe o tabaco para as terras espanholas em 1518 por iniciativa do Monge Ramon Pane. O tabaco enrolado, precursor do charuto, tornou-se rapidamente popular nas classes mais pobres.


Imagem (domínio público): Rodrigo de Jerez recebe as folhas de tabaco de um nativo.

Jean Nicot, embaixador francês em Portugal, escreveu sobre as propriedades medicinais do tabaco, descrevendo-o como uma panaceia. Ele levou a planta rústica para a corte francesa, onde foi usada como medicamento para a terrível enxaqueca de Catarina de Médici, a rainha-mãe. A eficácia do tratamento fez com que a popularidade do rapé de tabaco crescesse entre a aristocracia. Na verdade, as pessoas ficaram tão entusiasmadas com os seus poderes que o tabaco se tornou conhecido como “Herba Medicea” ou “Herba Catherinea”.


Imagem (domínio público): Jean Nicot leva o tabaco para as cortes europeias.

O tabaco na forma de cachimbo foi introduzido na Inglaterra pelo almirante Sir John Hawkins, em 1565, como passatempo para os marinheiros nas longas viagens. Em
1586, Sir Walter Raleigh traz o tabaco da Virgínia para a Inglaterra. Há o relato sobre um servo que vendo pela primeira vez Sir Walter Raleigh fumando cachimbo jogou água sobre ele, temendo que ele fosse ficar em chamas. Ao longo do século 17, a demanda pelas folhas oriundas da América cresceu tanto que se tornou moeda de troca, pois “era tão bom quanto o ouro”.


Imagem (domínio público): servo joga água sobre Sir Walter Raleigh.

Em 1571, o médico alemão Michael B. Valentini descreve diversos tipos de clisteres, ou enemas com tabaco que ele acreditava serem bons no tratamento de cólicas, nefrite, histeria, hérnia e disenteria. No mesmo ano, o Dr. Nicholas Monartes escreve “De Hierba Panacea”, o primeiro livro sobre o tabaco da história, onde apresenta as maravilhas da planta do tabaco, à qual atribuía a cura de 36 males.

Na época, os médicos espanhóis estavam fascinados com os poderes do tabaco. No final do século XVI o tabaco é introduzido na Polônia, na Turquia, no Japão e na Coreia. Em 1595 é publicado o primeiro livro em língua inglesa sobre o tabaco.


Imagem (domínio público): livro ilustra os dispositivos para o enema com tabaco (1776).

A época de Ouro do Cachimbo: Séc. 17

O século XVII é considerado como a “a idade de ouro do cachimbo”. A produção de tabaco expande nas colônias inglesas e portuguesas. Começa a saga de Jamestown, no estado da Virgínia, que se tornaria o maior produtor mundial de folha de tabaco por iniciativa do pioneiro John Rolfe que levou sementes do tabaco para a colônia americana em 1612.


Imagem (domínio público): Rodrigo de Jerez recebe as folhas de tabaco de um nativo.

Sir Francis Bacon escreve em 1610: “…há um aumento crescente no consumo de tabaco, que é um hábito difícil para se deixar”, descrevendo a qualidade aditiva do fumo. Em 1617, o Dr. William Vaughan poetisa:

“Que estranha é essa erva-daninha tabaco
Ela atravessa o cérebro, ela estraga a mente
Ela embota o espírito, ela escurece avisão
Ela priva a mulher do seu juízo.”


Imagem (domínio público): degustação de cachimbo em tabacaria na Inglaterra georgiana.

Sir Francis Drake apresenta o tabaco para Sir Walter Raleigh, o qual é reconhecido como responsável pela popularização do cachimbo na Corte Inglesa. O tabaco é utilizado como moeda em 1619 e seis anos mais tarde a coroa britânica estabelece o monopólio real do tabaco.


Imagem (domínio público): “Jacobean Tobacco House” (por Richard Brathwait).

Em 1632, Massachusetts torna-se a primeira cidade a proibir o fumo em locais públicos. Em Connecticut o juiz decreta: “O fumo é proibido aos menores de 21 anos que não podem fumar, exceto por prescrição médica”. Em 1693, o fumo é banido da câmara dos comuns inglesa.

A Época de Ouro do Rapé e do Tabaco Mascado: Séc. 18

O papa Bento XIII aprende a fumar e usar rapé e revoga as bulas papais contra o tabagismo clerical em 1724. O Butão aprova a proibição de fumar em público e proíbe também o fumo em prédios do governo, em 1727. Em 1730, surgem as primeiras fábricas produtoras de tabaco em rapé.


Imagem(domínio público): recipiente em lata com tabaco para mascar (século XIX).

O botânico sueco Carolus Linnaeus nomeia, em 1753, o gênero da planta do tabaco como nicotiana e descreve duas espécies: nicotiana rustica e nicotiana tabacum. Em 1760, Peter Lorillard se estabelece em Nova Iorque e fabrica charutos e rapé, sendo o responsável pela primeira campanha publicitária de tabaco nos EUA, através do envio de classificados nos jornais e cartazes pelos correios. O impacto negativo para a saúde era desconhecido naquela época.


Imagem (domínio público):
anúncio para venda de tabaco no formato “classificados” (1781).

No final do século 17, surgem os primeiros relatos de câncer associado ao tabaco:

  • John Hill relata os primeiros casos de câncer por uso de rapé nasal;
  • Samuel T. von Soemmering relata cânceres de lábio em fumantes de cachimbo;
  • Dr. Benjamin Rush descreve os riscos à saúde advindos do uso do tabaco e associa o uso de tabaco de mascar ao consumo abusivo do álcool;

Em 1800, as “Lorettes” – prostitutas que trabalhavam próximas à Catedral de Notre Dame de Loretts – se tornaram as primeiras mulheres a fumarem publicamente, hábito que naquela época era reservado somente aos homens.


Imagem (domínio público):
cortesãs jogando bilhar e fumando. Litografia de Bettennier Freres (1840).

A Época de Ouro do Charuto: Séc. 19

Da produção artesanal à máquina de enrolar cigarros

O novo impulso na expansão dos negócios do tabaco teve início com a revolução industrial no século 18 na Inglaterra com a progressiva substituição do sistema manual pela mecanização na produção. Enquanto na Idade Média o artesanato era a forma de produção mais utilizada, na Idade Moderna tudo mudou à exceção da produção de charutos, que manteve a tradição artesanal.


Imagem (domínio público):
litogravura da caixa de charutos cubanos “La Reina Imperial” (1891).

A burguesia industrial, ávida por maiores lucros, menores custos e produção acelerada, buscou alternativas para melhorar a produção. O aumento populacional nas cidades trouxe maior demanda de produtos e mercadorias. O desenvolvimento industrial trouxe maior ritmo de produção, barateamento dos produtos e estímulo ao consumo. Por outro lado, a mecanização trouxe graves problemas nas cidades industriais, como o desemprego e exclusão social dos menos qualificados.


Imagem (domínio público):
litogravura de plantação de tabaco e escravidão, Virgínia (1714).

O êxodo rural para as cidades, com o fim do feudalismo e da escravatura – por exigência de mão de obra para as fábricas –, acalentou sonhos de vários trabalhadores, mas trouxe também os problemas sociais, como baixa remuneração, falta de infraestrutura, precária legislação de proteção ao trabalho e de amparo social e problemas de saúde relacionados ao trabalho, como a tuberculose e o uso de drogas.


Imagem (domínio público):
plantação de tabaco e trabalho escravo na Florida (1830).

Se por um lado houve inegáveis transformações nas condições de vida das populações, por outro lado, houve substancial aumento nos riscos de adoecimento por acidentes e doenças ocupacionais e pela poluição industrial, configurando o “paradoxo do progresso”.

Além disso, a oferta de produtos para “aliviar a carga de estresse” e os sintomas depressivos incorporou o tabaco ao álcool, disseminando-se rapidamente junto às classes operárias como “válvula de escape”.

Em relação à produção e disseminação do tabaco, o consumo migrou da nobreza europeia aos trabalhadores. Para tanto, além do formato do tabaco em rapé, mascado, cachimbo ou charuto, houve a gradativa incorporação dos cigarros.

A incorporação de crianças na fumicultura é uma herança perversa desta lavoura – o trabalho infantil – que persiste no ciclo produtivo do tabaco nas famílias de fumicultores no Brasil e em outras regiões da Ásia, África e América Latina.


Imagem (domínio público):
trabalho de jovens, fumicultura EUA (séc. 19) e Índia (séc. 20).

No século 19, os mendigos de Sevilha picavam as pontas de charutos jogados na rua e enrolavam em um papel para fumar, ao que denominaram como ‘cigarro de pobre’. Portanto, o cigarro nasceu de uma improvisação dos mais pobres para fumar.

A invenção do papel para enrolar os cigarros é atribuída aos egípcios durante o combate contra os turcos, em 1832.

Os cigarros ficaram populares na Europa. A França detinha o monopólio na manufatura dos cigarros baratos – os “cigarros de pobres” – com os descartes de folhas dos charutos das famosas fábricas de Sevilha. Enquanto isso os soldados ingleses que voltavam da guerra da Criméia disseminaram o gosto por cigarros turcos e, em pouco tempo, a moda estava em voga em Londres.

A invenção da máquina de processar cigarros em 1880, por James Bonsack, revolucionou a oferta de tabaco, elevando a produção, exportação e o consumo em todo o mundo. Na mesma época, a propaganda do tabaco ganha o reforço dos cartões com exibição de imagens e as agências publicitárias surgem como flores silvestres, tornando o tabaco mais anunciado do que os elixires para a “cura do câncer”. Em 1889 é lançada a marca “Lucky Strike” que se tornou uma das marcas mais consumidas de cigarros no mundo.


Imagem (domínio público):
protótipo da máquina de enrolar cigarros de Bonsack (1880).

O tabaco era motivo de poesia…

A nicotina é isolada por Cerioli (1807) e definida como “essência do tabaco” ou “óleo essencial”. Charles Lamb escreve o famoso poema “A Farewell to Tobacco”, em 1811, do qual extraímos as primeiras estrofes:

Ode de despedida ao tabaco

“Pode ser uma maldição babilônica, / tão estreita que confunde o verso em minha gagueira, / se eu puder ver uma passagem / nesta palavra-perplexidade, / ou uma expressão possa encontrar, / ou uma linguagem para minha mente,
(Ainda a frase será longa ou pouca). Para me despedir de ti, oh grande planta! / Ou que possa relacionar em quaisquer vocábulos / metade do meu amor, ou a metade do meu ódio: / Por que eu te odeio, ainda que por amor, tê-la, / qualquer que coisa que eu lhe demonstre, / a pura verdade parece que vai será / uma constrangida hipérbole,/ E uma paixão para continuar / por seres mais uma amante do que uma erva daninha…”

Em 1890, Sir James Matthew Barrie, escritor e dramaturgo britânico, lançou o livro “Lady Nicotine”. Ele tornou-se mundialmente conhecido escrever as histórias de Peter Pan e Wendy.

O tabaco tinha o mesmo peso da ração e da bala…

No século 18 o tabaco foi introduzido na Guerra do México, na forma de fumo para mascar e charuto, como um dos suprimentos fundamentais nas frentes de batalha. Em outra guerra, a da Crimeia (1853-1856), os soldados britânicos aprenderam a fumar os cigarros enrolados em papel dos aliados turcos e levaram a prática para a Inglaterra. Conta-se que os soldados ingleses foram capturados em um trem russo carregado com provisões que incluíam os cigarros e que o incidente foi uma festa para os prisioneiros.

A multinacional do tabaco Philip Morris lançou-se no mercado do tabaco em 1854 e é hoje uma das gigantes do ramo.


Imagem (domínio público):
mulheres trabalhando em fábrica de cigarros no México (1903).

Na guerra civil americana (1861-1865) o tabaco foi fornecido aos combatentes junto com as rações, tanto para as tropas nortistas quanto às sulistas. Acredita-se que muitos nortistas conheceram o tabaco desta forma. O tabaco foi importante moeda no financiamento dos esforços bélicos, servindo como caução para os empréstimos tomados junto à França. Em 1863 foram criadas as primeiras caixas com estampas litográficas que originaram os maços. Era o começo da arte da caixa de cigarro que se revelou ao longo do tempo como uma das mais fortes peças publicitárias do tabaco.


Imagem (domínio público):
embalagens usadas durante a Guerra de Secessão (1861).

A comunidade científica desperta para os efeitos do tabaco…
Dr. Friedrich Tiedemann relata em 1854 o primeiro caso de tratamento para deixar de fumar. O “Relatório Anual da Sociedade Antitabaco Nova York”, de 1855, classifica o tabaco como “veneno da moda”, adverte contra os males do vício e atribui ao produto a metade de todas as mortes de fumantes entre 35 e 50 anos de idade.

Na mesma época a revista médica Lancet debate com seus leitores, levantando argumentos morais e preocupações dos médicos, mas ainda com poucas evidências. Em 1858, a Lancet faz a primeira publicação científica sobre os receios da comunidade médica acerca dos efeitos do tabagismo para a saúde.

O parlamento britânico aprova a lei das ferrovias de 1868, a qual obriga que os vagões sejam livres de fumo para evitar lesões aos não-fumantes. Esta pode ser considerada a primeira lei federal sobre ambientes livres de tabaco no mundo. Em 1871, a Casa Branca adotou a mesma medida.

O câncer de pulmão ainda era doença extremamente rara em 1889. O médico alemão Dr. Karminsk começou a pesquisar a possível relação com o tabaco e chegou a documentar 140 casos em todo o mundo.

A Época de Ouro do Cigarro: Séc. 20

Cigarro: primeiro produto globalizado
Em 1900, o consumo de tabaco havia alcançado 4,4 bilhões de cigarros vendidos. A despeito do surgimento de movimentos antitabaco em vários estados americanos, as tabageiras cresceram exponencialmente neste período, alavancadas pela máquina de Bonsack e pela intensa publicidade. Em 1901, de cada cinco americanos, 4 fumavam pelo menos um cigarro por dia.

No Brasil, a companhia de cigarros Souza Cruz é criada em 1903, sendo incorporada à British American Tobacco em 1912. O brasão da república incorpora a folha de tabaco.


Imagem (domínio público): brasão da república om a folha de tabaco.

Em 1906, a agência sanitária americana (FDA) proibiu a venda de alimentos e medicamentos que informassem os conteúdos nos rótulos. Originalmente, a nicotina se encontrava na lista de drogas, porém, com os esforços dos lobistas das tabageiras, os produtos do tabaco foram removidos da lista, e a Farmacopeia Americana aconselhou a inclusão do tabaco “apenas quando usado para curar, mitigar ou prevenir doenças”.

O congresso americano aprovou em 1907 o Ato Tillman proibindo contribuições de empresas para os candidatos a cargos majoritários nacionais. No entanto, não foram impostas restrições sobre os proprietários ou gestores das empresas. Logo, a lei se tornou impraticável e a indústria do tabaco aplaudiu. A propósito desta lei, Theodore Roosevelt escreveu na época:

“Agindo por trás de um governo ostensivo, entroniza-se um governo invisível que não deve nenhuma lealdade e não tem qualquer
responsabilidade para com a população. Destruir este governo invisível e impedir esta aliança profana entre os corruptores dos negócios e os políticos corruptos é a primeira tarefa do estadista no mundo de hoje”.

É importante frisar a atualidade dessa citação que, quase 100 anos depois, ilustra a nefasta pulverização de recursos de empresas privadas nas campanhas eleitorais de agentes públicos.

Em 1908, o Canadá foi pioneiro na legislação que proibia a venda de tabaco aos menores de 16 anos, o que nunca foi cumprido. A Inglaterra promulgou o “Ato da Criança”, em 1908, proibindo a venda de álcool e tabaco argumentando que o consumo do produto atrapalhava o crescimento dos jovens. No mesmo ano, RJ Reynolds introduziu o famoso camelo “Joe” nas peças publicitárias, catapultando as vendas de cigarros.


Imagem (domínio público): jovens fumando em St. Louis (1910).

Dr. Isaac Aldler estabeleceu forte ligação entre o câncer de pulmão e o tabagismo, precedendo em 50 anos o artigo de Doll & Hill que confirmou relação de causalidade entre o fumo e o câncer de pulmão.
A partir do advento da I Guerra Mundial (1914-1918), o tabaco foi introduzido, na forma de cigarros, nos campos de batalhas, ao lado da ração em conserva e das balas, tornando-se decerto o primeiro produto comercial globalizado consumido por civis e militares.

É famosa a citação de general norte-americano John Pershing logo após a vitoriosa campanha na primeira grande guerra mundial: “Você me pergunta o que nós precisamos para vencer esta guerra. Eu respondo tabaco, tanto quanto as balas. O tabaco foi tão indispensável quanto a ração diária. Estes foram três motivos para manter o moral da tropa elevado.”


Imagem (domínio público):
soldado oferece cigarro a prisioneiro, 1ª Guerra Mundial (1914).

Nem os profissionais de saúde escaparam do assédio das tabageiras na divulgação de seus produtos. A partir dos anos quarenta produziram-se peças publicitárias com médicos e dentistas recomendando o uso de determinadas marcas no combate à “tosse” e ao “mau hálito”, e à “dor de garganta”.


Imagem (domíniopúblico): médico fazendo propaganda de cigarro (1914).

A indústria do tabaco investiu milhões em campanhas de marketing. A RJ Reynolds gastou oito milhões de dólares para promover a marca Camel em 1921. O retorno foi tão espetacular que dois anos após a marca passou a líder, detendo 45% do mercado americano. O cigarro deixou de ser um hábito masculino e atingiu as mulheres, coincidindo com as primeiras campanhas de conquista do direito ao voto feminino no final dos anos 20 e com o ingresso delas nas fábricas em substituição dos homens que combatiam nas frentes da 2ª guerra mundial.

Em 1928, organizou-se a “marcha da liberdade” de fumar para debutantes e modelos de moda que caminharam pela 5ª Avenida em Nova Iorque durante o desfile de páscoa vestidas como a Estátua da Liberdade e erguendo seus cigarros Lucky Strike como “tochas da liberdade”.


Imagem (domínio público):
outdoor da marca Camel na Times Square – N. Iorque (1948).

Em relação direta com este crescimento do mercado consumidor do tabaco, sugiram vários estudos relacionando o produto a problemas de saúde. Neste período datam os grandes estudos epidemiológicos populacionais que estabeleceram uma relação causal entre o consumo de tabaco e o aumento da incidência de câncer de pulmão, na Inglaterra e nos Estados Unidos, dentre os quais podemos destacar:

  • Associação de câncer com fumantes pesados, estudo publicado no New England Journal of Medicine pelos médicos Lombard & Doering.
  • Associação de câncer de pulmão e tabagismo passivo, estudo publicado na Alemanha pelo Dr. E. Schnonherr: mulheres não fumantes desenvolveriam câncer pela inalação passiva de seus maridos fumantes, algo confirmado pelo clássico estudo de Hirayama, em 1987.

Dr. Raymond Pearl da Universidade Johns Hopkins publicou artigo na revista Science News Letter, em 1938: “O fumo está associado a um comprometimento definitivo da longevidade, os fumantes vivem menos do que os não fumantes. Esta perda é proporcional à quantidade habitual de uso de tabaco, sendo maior para os fumantes pesados e menor para os fumantes moderados”.

A revista Time defendeu indústria do tabaco sugerindo que os resultados do doutor Pearl amedrontariam os fabricantes de tabaco pelos riscos de morte, o que influenciaria os usuários de tabaco.

Nos anos trinta, as tabageiras adicionaram mentol ao tabaco e divulgaram os teores de nicotina de suas marcas.

Fritz Lickint, em 1938, publica um compêndio “Tabak und Organismus” atribuindo ao tabaco os cânceres da cavidade oral, esôfago, traqueia e pulmões. Ele também associa a exposição a fumaça ambiental como séria ameaça à saúde dos não fumantes.

Ainda na Alemanha, Franz Muller apresenta, em 1939, o primeiro estudo caso-controle do mundo sobre a associação entre câncer de pulmão e tabaco, e conclui que “o aumento extraordinário do tabagismo é a causa mais importante de câncer de pulmão”. Um resumo de seu trabalho foi publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA). Assim como já acontecera na 1ª Guerra Mundial, o tabaco fez parte do esforço de guerra, tendo Roosevelt declarado o cultivo de tabaco protegido. Os cigarros foram incluídos nas rações para as frentes de luta. As vendas elevaram-se em razão da grande procura pela população civil. Em 1940, o consumo per capita foi de 2.558 cigarros, mais do que o dobro do aferido em 1930.


Imagem (domínio público): mulheres fumando em ação na 2ª Guerra Mundial (1944).

O pesquisador britânico L. M. Johnston realizou experimento em 1942 com sucessivas administrações de nicotina em fumantes. Ele concluiu que “… a satisfação pode ser obtida a partir de tabaco mascado, de rapé inalado e da administração de nicotina”. O experimento foi publicado na Lancet.

Na contramão dos estudos científicos, estranhamente as tabageiras exibiram anúncios que mostravam médicos, dentistas e enfermeiras recomendando determinada marca “que seria menos prejudicial à saúde do que outras da concorrência”. As tabageiras criaram o instituto da dúvida entre os consumidores de tabaco.

Com a publicação de vários estudos científicos demonstrando, de forma inequívoca, os males do tabaco, as tabageiras criaram “centros de pesquisa” e convidaram médicos renomados para seus “comitês científicos”. O objetivo foi desqualificar estudos prejudiciais aos seus negócios.

Em 1950, um artigo dos médicos Richard Doll e Bradford Hill abalou os alicerces das tabageiras: “os fumantes pesados têm um risco 50 vezes maior de contrair câncer de pulmão quando comparados aos não fumantes”.

Ainda na década de 50 surgiram os primeiros processos de litigação contra a indústria do tabaco, movidos pelas vítimas ou por seus familiares, em diversas cortes nos Estados Unidos e na Inglaterra.

Em histórico encontro, na década de 60, os presidentes da American Cancer Society; American Heart Association, National Tuberculosis Association, e American Public Health Association enviaram carta conjunta ao presidente Kennedy apontando as fortes evidências dos males do tabagismo para a saúde pública e propondo a criação de uma comissão que foi aceita prontamente pelo presidente americano.

O resultado representou um marco nas políticas de controle do tabaco nos EUA com o surgimento do relatório “Surgeon General – 1964”, que se tornou referência em termos de saúde pública mundial no controle do tabagismo. O texto foi publicado periodicamente desde então. No relatório de 1964 publicaram-se as evidências científicas que associavam o tabaco ao câncer de pulmão.

Neste mesmo ano (1964), Addison Yeaman, conselheiro científico da tabageira Brown & Williamsons, em uma tentativa para minimizar os efeitos devastadores do relatório do Surgeon General para a indústria do tabaco, tentou associar o consumo de nicotina com o aumento da resposta ao estresse e na regulação do peso corporal.

Em 1998, quando a justiça americana determinou que se tornassem públicos os documentos secretos da indústria, foi encontrado um memorando deste mesmo conselheiro, datado de 1963 afirmava que a nicotina era viciante e, que portanto, o negócio da indústria do tabaco era a venda de nicotina, uma droga que vicia e que é eficaz na liberação dos mecanismos de estresse.

A partir dos anos sessenta, com a revolução nos costumes e a conquista de mais direitos, as mulheres tornaram-se alvos importantes das tabageiras, que produziram marcas com baixos teores de alcatrão e nicotina, além de sugestivos nomes para ganhar definitivamente o público feminino.


Imagem: campanha de marca de cigarros voltada para o público feminino.

Passaram-se poucas décadas para que se sentissem os efeitos que isto representou na morbimortalidade feminina, na elevação das taxas de infarto do miocárdio, acidente vascular encefálico e câncer de pulmão nas mulheres que em alguns países chegou, este último, a superar o câncer de mama. Além disso, houve uma inversão na prevalência do tabagismo, com as mulheres superando os homens em muitos países ocidentais.


Imagem: campanha de prevenção do tabagismo.
Fonte: http://www.coronary-heart.com/

A massificação da TV atraiu a atenção da indústria do tabaco para o patrocínio de eventos esportivos do calendário internacional – como as corridas de fórmula 1, fórmula Indy -, os shows musicais e eventos culturais.

O marketing da indústria tornou-se progressivamente mais agressivo e as marcas foram direcionadas para determinados perfis de consumidores, por exemplo, os cigarros com baixos teores de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono foram introduzidos no mercado buscando o público feminino. Além disso, a indústria realizou diversos estudos por segmentos de mercado para identificar os costumes, crenças e atitudes que poderiam resultar na experimentação desta ou daquela marca, considerando inclusive que há um reconhecido processo de fidelização do fumante a marca do cigarro que consome.

O apelo para imagens com homens e mulheres jovens, no vigor da atividade física, praticando esportes radicais, tendo liberdade e sucesso foi muito explorado nas publicidades da indústria do tabaco.


Imagem: campanha de marca de cigarros tendo como tema o “sucesso”.

O Papel da Indústria de Entretenimento

A partir da invenção do cinema, a indústria do tabaco encontrou uma poderosa aliada – a indústria de entretenimento – tanto no patrocínio e publicidade de seus anúncios quanto na inserção do fumo nas principais cenas com atores e atrizes que trouxeram glamourização ao tabaco na sétima arte. A inserção de imagens do tabaco ou de cenas com fumo são uma regra não somente nas produções hollywoodianas, mas também nas produções teatrais e televisivas, a despeito da proibição da publicidade do tabaco prescritas pela Convenção Quadro para o Controle do Tabaco da OMS, em 2003 e já adotada por 179 países que ratificaram a
convenção.


Imagem: James Dean, famoso astro de Hollywood.

A exposição ao fumo nos filmes é o maior fator de promoção do uso de tabaco para a juventude nos Estados Unidos, sendo responsável por 44% de todos os novos fumantes. Este tema é importante para o controle do tabaco, pois escapa às regulamentações nos diversos países.

O Centro de Controle de Doenças (CDC) e a Universidade de São Francisco, na Califórnia, nos EUA monitora o tabaco nos filmes nas últimas décadas. Em 2013, o número médio de inserções de tabaco em filmes foi tão alto quanto o registrado na média geral de todos os filmes ranqueados.

Os filmes classificados para jovens tiveram 45% de todas as impressões de tabaco em 2013, aumento de 39% em relação a 2010. O número de impressões de tabaco para o público de teatro atingiu o pico em 2005, 30,3 bilhões e, em seguida, reduziu em 50% nos 5 anos seguintes.

Em 2012, o Surgeon General concluiu que há fortes evidências de que a exposição às imagens com fumo em filmes estimula os jovens a fumar. Em função disso, estimou-se que 6,4 milhões de crianças se tornarão fumantes, e 2 milhões destas crianças morrerão prematuramente devido às doenças causadas pelo tabagismo.

O jovem, a vítima preferencial da indústria do tabaco

É assumido pela indústria do tabaco, em documentos acessados por ordem judicial, que as atitudes e percepções de fumantes, pais e colegas dos jovens fazem da juventude o principal alvo do mercado para o futuro da indústria, nas palavras dos seus próprios dirigentes, conforme demonstra a citação abaixo.

Segundo as palavras de um executivo da RJ Reynolds Tobacco, e memorando interno (1975): “Os jovens representam o negócio de cigarros amanhã. À medida que o grupo etário de 14 a 24 anos amadurece, ele se tornará a parte chave do volume total de cigarros, no mínimo pelos próximos 25 anos”.

Cada geração que interrompe o tabagismo ainda em vida ou, pela morte precoce causada por doenças relacionadas ao tabaco (DRT), é imediatamente substituída por cerca de 100 mil jovens que começam a fumar a cada dia segundo dados da OMS.

Destes, estima-se que metade continuará a fumar na vida adulta, o que gerará 250 milhões de crianças e jovens que morrerão de alguma DRT na vida adulta.

A entrada dia após dia deste novo contingente de consumidores assegura o lucro do mercado. Deste modo as tabageiras maximizam seus lucros com propagandas promocionais focadas na juventude.

As imagens publicitárias de cigarros são cuidadosamente elaboradas e controladas por meio de pesquisa combinada em duas frentes: na população alvo e nas reações dos jovens aos esforços promocionais. Isto é tão verdade atualmente quanto há quase 60 anos, conforme concluiu o relatório de um executivo da Philip Morris (1957):

“Atingir os jovens pode ser mais eficiente, ainda que o custo para os atingir seja maior, porque eles desejam experimentar; têm mais
influência sobre os pares de sua idade do que terão mais tarde, e porque são muito mais leais à sua primeira
marca”.

O negócio da indústria do tabaco é vender uma droga: nicotina

A célebre e articulada negativa dos sete anões da indústria do tabaco, em 1994, jurando “acreditar” que a nicotina não causava dependência para se defenderem em processo na corte americana, mostrou o grau de cinismo e hipocrisia das tabageiras na defesa de seu negócio.


Imagem: audiência pública do Congresso Norte-americano para regulação
do tabaco com os representantes da indústria do tabaco afirmando que a nicotina não era aditiva.

A partir das ações de familiares das vítimas, as justiças americana e britânica obrigaram a indústria do tabaco a disponibilizar seus documentos secretos – “verdadeira descoberta dos pergaminhos do mar do tabaco”. Isso revelou que as tabageiras não só sabiam do forte poder aditivo da nicotina, como também de doenças que o cigarro causava no organismo humano.

As companhias de tabaco experimentaram lucros estratosféricos, estando entre as dez maiores empresas participantes do PIB brasileiro nas décadas de 70 e 80.

O Brasil é o 2º país maior produtor e o 1º país com maior volume de exportação de folha de tabaco. Contudo, a arrecadação com a venda de derivados de tabaco no mercado interno e com a exportação das folhas de tabaco não compensa os elevados custos médico-sociais das doenças relacionadas ao consumo de tabaco.

 

CONVENÇÃO QUADRO PARA O CONTROLE DO TABACO

 

Um tratado mundial de saúde pública – Convenção Quadro para o Controle do Tabagismo – foi instituído pela Organização Mundial da Saúde, em maio de 2003, ratificado atualmente por 179 países e em vigor há 10 anos.

A Convenção Quadro (CQCT) é um marco para a proteção das gerações atuais e futuras dos efeitos danosos à saúde gerados pela exposição ativa e passiva às substâncias tóxicas do tabaco. Este tratado mundial de saúde pública foi fruto de um grande esforço que mobilizou diversas organizações científicas, da sociedade civil e de instituições, sendo uma grande vitória na luta contra a epidemia mundial de tabagismo.


Imagem: evento comemorativo de 10 anos da Convenção Quadro no Brasil (OPAS, 2015)

A partir da ratificação do tratado pelos países, uma série de recomendações norteia suas ações na redução do consumo, na prevenção à iniciação, na oferta de tratamento aos fumantes, na advertência sobre os riscos, no aumento dos preços dos derivados e na promoção de ambientes livres do tabaco, entre outras políticas.

A indústria do tabaco vem reagindo fortemente a estas políticas, usando de tráfico de influência para impedir com que os países regulamentem cada artigo da CQCT. A interferência da indústria é tão forte que foi o tema escolhido da Campanha do dia Mundial sem Tabaco para 2012, pois é necessário limitar a interferência da indústria do tabaco nas políticas públicas.

O Brasil desde o ano 2000 impõe fortes restrições à propaganda comercial, publicidade e patrocínio de eventos de quaisquer naturezas pela indústria do tabaco. Os artigos da CQCT que tratam destes temas são:

  • Artigo 1: define “publicidade e promoção do tabaco”, como qualquer forma de comunicação, recomendação ou ação comercial com o objetivo, efeito ou provável efeito de promover, direta ou indiretamente, um produto do tabaco ou o seu consumo.
  • Artigo 13: determina que o Estado deve proibir toda forma de publicidade, promoção e patrocínio do tabaco que promova um produto de tabaco por qualquer meio que seja falso, equivocado ou enganoso ou que possa induzir ao erro, a respeito de suas características, efeitos para a saúde, riscos e emissões.

As políticas que obrigaram a colocação de imagem de advertências dos riscos para a saúde na face posterior, laterais e, agora, no caso do Brasil, também em um terço da frente dos maços, a partir de 2016, foram objeto de demandas judiciais por parte das tabageiras que buscaram impedir a difusão das mensagens de alerta sobre o produto consumido pelo público.


Imagem: 3ª Série de Advertências nos maços de cigarros no Brasil (2009).

 

HISTÓRIA DA LUTA CONTRA O TABACO NO BRASIL

 

Durante o período colonial, os portugueses tiveram no tabaco importante fonte de receitas para exportação, ao lado do café e do açúcar. Desde então, a importância do tabaco no Brasil é tamanha que ele figura até no brasão da república.

“O abuso do tabaco como causa de angina de peito” foi o título da primeira comunicação científica brasileira no
período do império sobre o tabagismo. O texto é de autoria do Dr. Torres-Homem e foi publicado em 1863 na Gazeta Médica do Rio de Janeiro.

Em 1869, o médico Francisco Werneck de Almeida defendeu a tese de doutorado, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com o tema: “Do uso do tabaco e de sua influência sobre o organismo”.

Coube ao deputado Ivan Luz, em 1965, apresentar o 1º projeto de lei (PL) sobre tabaco na Câmara Federal: “instituía a obrigatoriedade de advertência sobre os malefícios do fumo nas embalagens dos maços de cigarros”.

Em 1971, o senador José Lindoso apresentou Projeto de Lei que “Institui a proibição parcial da propaganda do fumo nos meios de radiodifusão e TV e sua regulamentação comercial”; além disso, “reiterava a obrigatoriedade de advertência nos maços de cigarros e, a não-permissão da venda para menores”.

A legislação federal contra o fumo começou a sua trajetória com a promulgação das seguintes leis:

  • Lei7.488/86: institui o Dia Nacional de Combate ao Fumo;
  • Lei 9.294/96: restringe uso e propaganda de tabaco, bebidas com teor alcoólico e medicamentos;
  • Lei 9.782/99: criação da ANVISA: inclui a regulamentação, o controle e a fiscalização dos produtos derivados do tabaco;
  • Lei 10.167/00: amplia a restrição da propaganda na mídia
    e nos esportes em geral, outdoor e limita a publicidade aos pontos internos de venda,
  • Decreto 5.658/2006: promulga a Convenção Quadro sobre Controle do Tabaco.
  • Lei 12.546/11: cria política de preços mínimos para
    os cigarros; promove os ambientes livres de tabaco; proíbe
    propaganda comercial nos pontos de venda e aumenta espaço
    para advertências em 30% da parte frontal dos maços.
  • Decreto 8.262/14: regulamentou os artigos da Lei 12.546/11, Lei Antifumo.


Imagem: Cartaz alusivo à
regulamentação da lei antifumo no Brasil (2015).

 

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https://web.stanford.edu/class/e297c/trade_environment/health/htobacco.html

Texto escrito pelo autor para capítulo do livro: “Álcool,
Tabaco e Maconha: Drogas Pediátricas”, organizado pelo
Dr. João Paulo Becker Lotufo, lançado em março
de 2016.

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